terça-feira, 23 de novembro de 2010

Engenhocas e restauro de velharias



Os entusiastas do tuning de automóveis pegam num carro desconjuntado ou banal e, com traba­lho de pintura, trabalho de chapa e incorporação de toda a espécie de acrescentos, são capazes de o transformar num carro novo e sem igual.

A Evo­lução funciona como estas engenhocas: pega numa forma de vida e desembaraça-se como pode para produzir uma forma de vida nova.
Aqui, a ideia-chave é - em suma - o desenrascanço, o improviso, o espírito de engenhocas, isto é, ir fazendo pequenas melhorias à medida das possi­bilidades. Quando a Evolução produz uma nova espécie, não parte do zero, usa os antepassados dessa nova espécie como matéria-prima.
Um adepto do tuning de automóveis pode fazer todo o tipo de modificações criativas e melhorias. Pode pintá-lo de novo e substituir algumas peças por outras melhores. Pode elevá-lo ou baixá-lo, fazê-lo descapotável, instalar-lhe vidros fumados ou espelhados, um aileron traseiro, enfim, o que lhe der na gana. É verdade que, em princípio, se pode adicionar partes novas feitas de raiz para o efeito, inventar novos adereços e até um carro novo. Mas não começa por desenhar um avião ou um submarino ou a planta de um edifício de escri­tórios - ele permanece fiel ao modelo básico que um século de indústria automóvel cristalizou.
Também assim é a Evolução. Sabemos que houve um tempo, há milhões de anos, em que as formas de vida eram muito simples, pelo que foi relativamente fácil conceber os mais radicais e bizarros modelos de seres vivos, tendo sido assim que os seres vivos se dividiram nos seus ramos principais (por exemplo, os Fungos, as Plantas, os Animais). Todavia, à medida que o tempo foi passando, cada ramo desta árvore da vida foi-se especializando e refinando e, com isso, as solu­ções de design prévias tornaram-se estruturais e, desse modo, menos maleáveis.
Pensem nas rodas dos carros.

Um adepto do tuning pode instalar pneus de jeep, pneus mais finos, jantes, raios, etc, mas o carro não deixará de ter quatro rodas. Isto sucede porque os enge­nheiros de automóveis decidiram há muito tempo manter-se fiéis a essa opção. Seria possível cons­truir veículos decentes só com três rodas, ou seis rodas, mas, nesse caso, o ideal seria construí-los de raiz e com um design apropriado. Alterar um carro normal para que passasse a ter apenas três rodas implicaria muito trabalho se se quisesse que o carro continuasse a funcionar. Seria preciso alterar muitos aspectos nesse carro, incluindo os mais estruturais. Como cada parte está dese­nhada para se encaixar nas outras, o carro teria de ser praticamente todo alterado (para onde iria o motor e como funcionaria o veio de transmis­são? Por princípio, o melhor seria construir de raiz o carro de três rodas.
A mesma lógica se aplica aos seres vivos. Pensa nas patas. Minhocas, estrelas-do-mar e cento­peias provam que se pode fazer um animal bas­tante normal com praticamente qualquer número de patas. Mas os peixes ancestrais dos anfíbios modernos, répteis, aves e mamíferos ficaram irre­mediavelmente comprometidos com o design qua­tro patas desde muito cedo, e logo naquele tempo longínquo em que os seus antepassados arrisca­vam as primeiras incursões em terra firme. Todos nós somos membros deste grupo de tetrápodes.
Como já perceberam, caranguejos, insectos e aranhas pertencem a outro grupo.

Tal como uma equipa determinada de entu­siastas do tuning poderia, se houvesse tempo e uma razão forte para o fazer, transformar um carro normal num carro de três rodas, também a natureza pode modificar de forma drástica o design quatro patas que os nossos antepassados adoptaram. Por exemplo, sabemos que partilha­mos um destes distantes antepassados com as cobras e também com as baleias. Quanto às aves, aos morcegos e ao homem, as patas dianteiras foram de tal forma alteradas que lhes chamamos "asas" e "braços", embora todos tenham quatro membros.
A regra mantém-se, porém: o que foi experimentado e testado tende a manter-se em uso.
A Evolução limita-se a ser um engenhocas que introduz variações.
As novas espécies tendem a ser versões modificadas, e não propostas radical­mente inovadoras.
Sabias que, ao longo da Evo­lução dos cavalos, a selecção natural fez com que de cinco dedos passassem a ter apenas um e com que se tornassem maiores, mais rápidos e mais fortes? Ora, nem por isso os cavalos que conhecemos hoje deixaram de ter quatro patas, tal como os seus antepassados.
Talvez já tenhas dado conta deste trabalho de um engenhocas - pequenas e médias alterações a um design básico comum - quando observas esqueletos de grandes animais em museus ou em livros. Uns são maiores do que outros, cada um tem a sua dentição e uma forma próprias, mas tendem a parecer-se uns com os outros: a cabeça à frente, a cauda atrás, quatro patas, crânio com órbitas oculares e mandíbula inferior, uma coluna vertebral de aspecto flexível, costelas para prote­ger os órgãos, etc.
São semelhantes porque são aparentados!
Fonte do Texto : Evolução - Daniel Loxton - Fundação Calouste Gulbenkian.

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